De todos os sete livros lançados neste segundo semestre de 2022 no rastro dos 80 anos de Caetano Veloso, festejados em 7 de agosto, Lado C é o único que se debruça especificamente sobre a musicalidade que embala o cancioneiro do artista.
Mesmo sem escapar da veneração do artista, reverência recorrente em todos os textos escritos na mídia para saudar a chegada de Caetano ao panteão dos octogenários da MPB, os autores Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes apresentam livro interessante por descortinar os bastidores das criações dos discos e shows feitos pelo cantor, compositor e violonista baiano com a carioca bandaCê entre 2006 e 2015, fazendo jorrar os gozos e inseguranças do artista ao longo da jornada que gerou os álbuns Cê (2006), Zii e Zie (2009) e Abraçaço (2012), além dos respectivos shows originados dos discos.
A contribuição de Caetano ao livro é inexpressiva, embora o nome dele conste na lista dos que deram depoimentos aos autores. A matéria-prima de Lado C são as reveladoras entrevistas de Marcelo Callado (bateria), Pedro Sá (guitarra) e Ricardo Dias Gomes (baixo), músicos – cerca de 30 anos mais jovens do que Caetano – que formaram em 2006 o trio batizado como bandaCê.
A partir dos depoimentos dos músicos e de trechos de entrevistas concedidas por Caetano a jornais e revistas nas épocas dos lançamentos dos discos e shows, assim como das reproduções de críticas, Luiz Felipe Carneiro e Tito Guedes conseguem traçar consistente painel evolutivo dessa fase Cê, cujo embrião é a gravação da música Rock’n’Raul (Caetano Veloso, 2000) no álbum Noites do norte (2000), disco de repercussão (bem) aquém da esperada pelo cantor.
Indissociável do rejuvenescimento do público e da discografia de Caetano a partir de 2006, o som Cê ainda reverbera em registros posteriores como o da canção Anjos tronchos (Caetano Veloso, 2021), talvez por isso mesmo escolhida pela diretoria de marketing da gravadora Sony Music para ser o primeiro single do álbum Meu coco (2021), o primeiro disco de inéditas de Caetano desde Abraçaço (2012).
Fazendo jus ao subtítulo A trajetória musical de Caetano Veloso até a reinvenção com a bandaCê, o livro Lado C historia nas primeiras 75 páginas a relação do cantor com outros músicos e bandas em recorte histórico que parte do álbum Transa (1972) – comumente relacionado à fase Cê por ser disco de banda, cultuado pela sonoridade – e que dá justa ênfase aos cinco álbuns gravados por Caetano Veloso com A Outra Banda da Terra entre 1978 e 1983, antes de abordar os encontros determinantes do artista com Arto Lindsay e com o violoncelista e maestro Jaques Morelenbaum entre 1989 e 2004.
Quando entra enfim no x da questão, Lado C mostra como a bandaCê se formou a partir da afinidade entre Caetano Veloso e Pedro Sá, guitarrista incumbido pelo cantor em 2006 de formar um grupo para gravar o que se tornaria o primeiro álbum solo de músicas inéditas do artista desde o já mencionado Noites do norte.
Como Caetano exigiu um tecladista, Pedro arregimentou Ricardo Dias Gomes. Para o posto de baterista, o guitarrista pensou em Domenico Lancellotti e, depois, em Stéphane San Juan, mas acabou optando por Marcelo Callado. E foi assim que nasceu a bandaCê, trio enxuto com o qual Caetano embasou o álbum Cê com a batida crua do rock. E o resto é uma história que os autores contam com elegância em texto bem escrito.
Mérito de Luiz Felipe Carneiro (autor de livro sobre o Rock in Rio) e de Tito Guedes (autor de um dos textos mais embasados da fluida seleção do livro 1979 – O ano que ressignificou a MPB), a fluência do texto permite que o leitor vire as páginas de Lado C sem perda de interesse pela contínua exposição das gêneses e repercussões dos três álbuns e três shows feitos por Caetano Veloso com a bandaCê em trajetória encerrada em 21 de junho de 2015, sem choro nem vela, em apresentação gratuita do show Abraçaço (2013) na Virada cultural da cidade de São Paulo (SP).
Artista por vezes medroso de investir na própria musicalidade, Caetano foi perdendo a insegurança a partir do trabalho com Jaques Morelenbaum em processo completado com a bandaCê, à medida em que foram vindo ao mundo álbuns como Zii e zie – disco pautado pela cadência do transamba – e Abraçaço, disco de conceito mais difuso que gerou o show que, na visão do trio, marcou o ápice da interação com o cantor em período também marcado pela renovação do público de Caetano e, em contrapartida, pelas estranhezas de ouvintes mais identificados com o cantor das grandes canções da fase mais MPB dos anos 1970 e 1980.
Ao fim da narrativa do livro Lado C, em fala reproduzida na página 249, Pedro Sá resume sem falsa modéstia o legado da Cê na trajetória musical de Caetano Veloso. “Ele se afirmou muito musicalmente. Caetano tinha uma parcimônia com o lado músico dele. E com a gente exercitou essa falta de medo. A bandaCê deu a ele essa segurança. Em Meu coco, eu vejo muito o Caetano como produtor musical. Ele está se bastando”, ressalta o guitarrista que ajudou Caetano Veloso a mudar o curso de história que, a julgar pelo viço do álbum Meu coco e do próprio artista já octogenário, ainda ganhará outros capítulos e bandas.
Por Mauro Ferreira Jornalista carioca que escreve sobre música desde 1987, com passagens em ‘O Globo’ e ‘Bizz’. Faz um guia para todas as tribos.
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